As galinhas e as águias: um pequeno mito sobre a visão de mundo

As galinhas e as águias: um pequeno mito sobre a visão de mundo

A diversidade que há no mundo é vista por diferentes olhares, com isso, a cada novo olhar, até aquilo que poderia ser igual, pode tornar-se algo diferente – sempre conforme os olhos de quem vê.

Deixe-me exemplificar com citações de filósofos, vejamos: Schopenhauer consagrou esta ideia na famosa frase “O mundo é a minha representação”[1]; outro teólogo conterrâneo meu, Leonardo Boff, escreveu que “Todo ponto de vista é a vista de um ponto”[2] em seu livro A Águia e a Galinha, – cujo título da obra, homenagearemos neste texto.

Realmente, fico imaginando o ponto de vista que tem uma águia olhando a paisagem das alturas, e ponto de vista de uma galinha ciscando o chão de dentro do galinheiro: a vista não tem como ser a mesma quando olhada de pontos diferentes[3]. (Será mesmo?).

Esta analogia, que não é nova, é interessante para nós, não apenas no sentido comparativo banal do “temos que ser águias e voar alto, ao invés de galinhas que só olham para o chão” – comumente entoado pelo senso comum, mas também é válida no sentido de olharmos essa metáfora por outros pontos de vista, como por exemplo: Que mal há em ser como a galinha, em gostar de olhar para o chão? Em ter medo das alturas e preferir a segurança e conforto que o galinheiro proporciona? Quem disse que isso é errado? Errado de acordo com quais preceitos?

Talvez, a sociedade tenha vendido a ideia de que temos que ser como as águias e voar alto, ser livres, ter sonhos grandes, buscar a felicidade nas nuvens, por outro lado, para esta mesma parcela da sociedade que pensa assim, ser como as galinhas, é tido como algo desabonador,  não recomendado e apontado como motivo de infelicidade.

Em primeiro lugar, gostaria de dizer que de acordo com a Filosofia Clínica, a felicidade não é um objetivo universal: nem todo mundo quer ser feliz (sei que essa afirmação costuma chocar). Em segundo lugar, existem casos de gente que é infeliz por estar buscando a felicidade almejada nos papéis errados: gente que escolheu viver como águia achando que a felicidade estaria nas alturas, na liberdade, e nunca a encontrou, pois a sua felicidade estava na segurança, na rotina do galinheiro; ou o contrário, gente que vive a vida rotineira como se fosse galinha, procurando a sua felicidade ciscando no chão e não a encontra porque ela está em sobrevoar lindas paisagens distantes.

Então, a questão é mais sobre descobrir qual o melhor papel para cada um de nós. E não há somente dois – ou águia, ou galinha – existem muitos outros, ou até mesmos mesclas disso. Há quem goste de ser como uma galinha quanto as questões afetivas e de relacionamentos, e como uma águia na vida profissional, nos negócios. Os exemplos poderiam ser muitos nesta analogia, não temos um único ponto de vista, pois conforme o ponto em que a vista é percebida, a paisagem será outra.

Isso nos remete à uma lição de respeito aos que têm pontos de vista diferentes dos nossos: eles têm o direito de ver de um outro jeito, afinal, estão em outro ponto. Cada um tem a sua história de vida, a sua maneira de ser e estar no mundo. Nem por isso, estamos condenados a ver sempre da mesma maneira, em alguns casos, existe a possibilidade de escolhermos com que olhos queremos ver, independente de sermos como águias ou galinhas, ou o que quer que seja.

Agora, vou contar uma breve história que aconteceu em uma pequena aldeia de um lugar qualquer, no qual havia um galinheiro habitado por galinhas pensantes.

Duas galinhas realizavam seu trabalho ciscando o chão enquanto conversavam sobre o que viam do mundo lá fora olhando pelas grades do galinheiro:

– “Ah! O mundo é tão feio, meio acinzentado de poluição, tem sujeira e lixo espalhado para todo o lado, os humanos só criaram lixo para o planeta, há árvores que foram cortadas, o desmatamento é um problema sério, a terra tá tão seca, não chove mais, esse clima anda tão preocupante ultimamente, e olha só as paredes do galinheiro vizinho ao lado, que coisa mais feia, tudo sujo e velho, descuidado, deteriorado pelo tempo, ninguém se importa, assim, cada dia só tem a piorar, já me sinto mal só de pensar. Você não acha?”

– “Eu acho que o mundo é lindo, sabe. Principalmente num dia como hoje, em que a luz está tão suave e amarelada, fazendo com a paisagem fique toda dourada. Até as pedras, parecem pepitas de ouro reluzindo no chão, as folhinhas verdes devem estar tão felizes fazendo fotossíntese, além disso criam desenhos na parede do galinheiro com a sombra das folhas, fica lindo, tem até um vaso de cerâmica que foi deixado ali por algum motivo, é tão perfeito, que maravilhosa é esta arte que os humanos fazem de dar formas ao barro, transformando-o em objetos de cerâmica, há alguns tocos de cigarro jogados, talvez a função do vaso de cerâmica era jogá-los dentro, usando-o como lixeira, mas não julgo quem fez isso, afinal a gente não sabe pelo que a pessoa está passando, os motivos que tem, eu só desejo que esta pessoa fique bem, que esteja bem, não só esta pessoa, mas todos os humanos, e todos os animais também, como eu me sinto tomada de amor pela vida ao olhar por essa janela, a vida é tão linda, é isso que eu acho!”

Comparação

Essas são as duas imagens que as galinhas viam, respectivamente, a primeira e a segunda. Trata-se da mesma cena pois elas estavam lado a lado dentro do galinheiro olhando pela mesma janela. As duas eram galinhas, viviam sob o mesmo teto, praticamente nas mesmas circunstâncias, mas habitavam mundos tão diferentes, era isso o que se refletia na maneira como cada uma via a vida.

Neste mesmo lugar sobrevoavam duas irmãs gêmeas águias, que olhando para baixo, lá do alto onde estavam, conversavam:

– “Parece que tem um galinheiro lá embaixo, está vendo? Fico imaginando que vida medíocre, levam aquelas pobres galinhas, que nunca viram nada, só comem ração que recebem do humano que as cria, que falta de dignidade, que horrível é uma vida assim. Como é feio lá embaixo, só vejo lixo, parece tanta pobreza, só de olhar daqui de cima, já fico mal, imagina quanto sofrimento é viver lá, tá vendo lá embaixo?”

Vaso Fosco

Apontou a águia para sua irmã, que respondeu:

– “Eu não vejo isso que você está vendo irmã, parece sim que tem um galinheiro lá embaixo, mas não se parece em nada com o que você está me descrevendo, a paisagem que eu vejo, começa com uma luz dourada por toda a paisagem, assim imagino que lá embaixo, devem habitar seres iluminados, porque só seres iluminados é que conseguem ver e viver na suavidade e na beleza da luz dourada…”

Vaso dourado

E não falou mais nada, porque assim, ao invés de terminar, começava a história…

 

Referência

BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. 34. ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Trad. M. F. Sá Correia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.

 

[1] “Esta proposição é uma verdade para todo o ser vivo pensante, embora só no homem chegue a transformar-se em conhecimento abstrato e refletido. (…) Possui então a inteira certeza de não conhecer nem um sol nem uma terra, mas apenas os olhos que veem este sol, mãos que tocam esta terra; em uma palavra, ele sabe que o mundo que o cerca existe apenas como representação, na sua relação com um ser que percebe, que é o próprio homem” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 9).

[2] “Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação” (BOFF, 2000, p. 9).

[3] Este parágrafo faz alusão aos Exames das Categorias em Filosofia Clínica.

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