A menina que entrou pela janela

A menina que entrou pela janela

Sophie estava com 9 anos, morava em um lugar afastado no subúrbio de Paris, é filha de uma imigrante africana que trabalha longas jornadas tentando esquecer os problemas da vida e se manter sóbria quanto ao alcoolismo.

Na escola, a professora de Sophie deu uma tarefa aos alunos com o objetivo de motivá-los; distribuiu folhas de papel a todos da turma e solicitou que eles fizessem um trabalho colocando nas folhas em branco como seria a vida perfeita que cada um gostaria de viver, pediu que eles imaginassem que o impossível seria possível, que os sonhos da vida perfeita de cada aluno deveriam ir o mais longe que alcançassem, pois não haveria sequer nenhum limite nesta atividade que realizariam.

Sophie olhou para as folhas em branco, não sabia se havia compreendido direito o que era para fazer, não estava acostumada com este tipo de tarefa, era a primeira vez que a professora lhes dava uma atividade assim. Com 9 anos, ela não tinha sonhos de uma vida perfeita, olhou para os lados e viu que os colegas começavam a escrever concentrados, ela não sabia o que escrever. Começou a olhar pela janela da sala, estava um dia cinza e frio, o acinzentado lembrava a fumaça dos cigarros que sua mãe fumava quando se embriagava, lembrou da casa delas, da vida cinza que viviam. Sophie entendeu que vivia uma vida sem cores e que não gostava disso. Foi como se uma luz acendesse e ela sorriu para a professora, como quem diz: “agora eu entendi a questão”.

Começou a desenhar sem pensar, olhando pela janela, copiou os traços, desenhou uma grande janela aberta do tamanho da folha. Respirou, voltou a si, olhou em volta, os colegas escreviam, só ela desenhava. Relembrou que a professora falou que era para colocar na folha como imaginavam a vida perfeita, mas não havia falado se era para escrever ou desenhar. Voltou a olhar para o desenho da janela que havia feito e gostou do que viu. Viu cores surgindo dentro do desenho da janela vazia, pegou os lápis de cor e começou a pintar, esqueceu-se de si e do mundo… Só havia uma vida repleta de cores, a vida perfeita que acontecia através daquela janela.

Quando todos terminaram a professora recolheu as atividades da turma e se surpreendeu com o desenho de Sophie: primeiro achou que não tinha nada a ver com aquilo que havia proposto, depois continuou olhando a perfeição do desenho para uma criança de 9 anos, enxergou um grande talento artístico em Sophie, mostrou o desenho aos colegas da classe e falou que o desenho da colega era Arte e, que a Arte é uma maneira diferente de responder a questões como esta da atividade que haviam feito.

A partir desta janela a vida de Sophie começou a se conectar cada dia mais com o desenho e a pintura. Todos na escola elogiavam suas produções, ela passou a pintar na adolescência e, como era de se esperar, conseguiu uma bolsa e foi estudar artes plásticas na universidade.

No curso de Artes, Sophie se encontrou, encontrou pessoas que a encontraram, tudo tinha a ver com ela: as pessoas que viam as cores do mundo – como ela –, as cores da vida, cada vez mais vivas, iluminadas e radiantes, as cores que ela via na vida, no dia a dia, e as cores que suas pinturas traziam para o mundo. Ela não sabia mais diferenciar (e nem precisava), o que era “realidade” e o que era “pintura”, tudo eram cores. Ela vivia a vida perfeita dos sonhos imaginada pela atividade feita na sala de aula em um dia cinza, quando aos 9 anos, olhou pela janela e acabou entrando por ela.

A sua infância acinzentada, cor da névoa de fumaça dos cigarros da mãe, quando ela tinha recaídas e bebia demasiadamente, se tornou uma fotografia antiga em tom de sépia, que Sophie olhou com carinho, da mesma forma como quando estudava alguns dos grandes pintores do passado e mesmo que não compreenda ou não tenha afinidade com a Arte deles, respeita e fica grata pelo legado deixado por eles.

Em pouco tempo, Sophie estava expondo seus quadros em diversas galerias de arte, começou a atrair bons olhares dos críticos, vendeu obras para algumas celebridades, expôs em museus renomados. Acabou se tornando uma artista reconhecida, até a vida da mãe de Sophie começou a ser invadida pelas cores do sucesso da filha. Sua mãe sentia somente orgulho pela filha que havia se tornado uma pintora famosa, e isso era tudo, não precisava de mais nada, até o antigo problema com o álcool de sua mãe desapareceu sem que elas percebessem. O mundo cinza foi-se embora, elas nem se lembravam mais que um dia existiu…

O que fez com que isso acontecesse? Como Sophie conseguiu viver a vida que tinha tudo a ver com ela? Foi a atividade proposta pela professora naquele dia que era mágica?

Não havia mágica nenhuma, dizer que Sophie entrou por uma janela mágica para viver a vida que ela sonhou é uma bonita metáfora, mas foi algo bem mais simples que funcionou com ela.

De acordo com a Estrutura de Pensamento (EP) de Sophie havia um forte peso no Tópico relacionado aos Dados de Semiose, ligados ao desenho e pintura, ela tinha uma maneira artística de ver o mundo, isso já estava nela. Ela descobriu naquele dia desenhando a janela, durante a atividade da escola. À medida que desenhava e pintava, mais Tópicos iam se associando, criando movimentos, conduzindo a EP dela para coisas que tinham cada vez mais a ver com isso (e com ela). Tais movimentos foram se conectando, estabelecendo Vizinhanças e a conduziram para um novo patamar existencial: o dela. Aquele no qual ela deveria estar, pois tinha a ver com a forma como seus Tópicos haviam se organizado autogenicamente.

Quando se investe energia em um tópico que tem peso dentro da EP, como no caso de Sophie, que foram os elementos de Semiose ligados à pintura que possibilitaram a criação de conectivos: ela foi dando intencionalidade a eles, até que foram se tornando janelas e mostraram outros horizontes[1].

Sophie olhou pela janela – que era a dela – e viu cores. E você, quando olha pela janela que é a sua, o que vê?

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[1] “Dependendo da maneira como o conectivo é construído ele irá se propagar, ou se ramificar. Alguns virarão estradas e irão para muito longe”. (Packter, 2016).

(Anotação de aula realizada por mim durante conferência do filósofo Lúcio Packter na Semana Nacional de Estudos em Filosofia Clínica 2016 – Evento que tratou dos conectivos, da construção de janelas em Analíticas de Linguagem, cuja temática inspirou este artigo).

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DICAS DE FILMES:

  • LILA – A short film – 2014 – Carlos Lascano.


(Acesso em: 13 Jan. 2017).

O mundo de Lila é mais um exemplo didático que foi indicado pelo professor Lúcio Packter para tratar sobre as “Janelas”, os Conectivos que se estabelecem via Dados de Semiose (o Desenho, no caso de Lila).

 

  • Letters to Juliet (Cartas para Julieta) – 2010, dirigido por Gary Winick.

Trailer:

Neste filme conheça a história de outra Sophie, cujo Dado de Semiose era a escrita/ literatura, perceba os conectivos que foram surgindo durante a trama e descubra a janela que se abriu na vida dessa personagem.

 

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