Falar sobre quem nós somos é muito mais do que responder a uma simples pergunta, é dissertar sobre uma das grandes questões filosóficas da humanidade. Da antiguidade aos dias de hoje, os filósofos questionam sobre quem, afinal, nós somos. Ainda não há uma resposta consensual, o que nos mostra o inesgotável valor da Filosofia diante de questões como esta. É por isso, que é comum que as respostas dadas pelas pessoas de nossa época estejam de acordo com certos padrões da sociedade e cultura.
Normalmente, fala-se a respeito do Papel Existencial[1] (Pai/Mãe/Filho/Esposa ou Marido, Profissão que exerce…) sobre a formação que possui, ou lugares que frequenta – que em Filosofia Clínica se encaixam no Tópico 1, que diz respeito a Como o Mundo Parece (fenomenologicamente) à pessoa, trata-se dos coletivos, como por exemplo, a família, o trabalho, a escola, a igreja, a sociedade… Pode-se falar ainda sobre os valores[2] ou crenças[3] que possui, os sonhos[4] que almeja, sobre o que acha a respeito de si próprio[5] – sendo que a visão que temos a respeito de nós mesmos, pode ou não corresponder com o que de fato somos; também há quem fale sobre como se sente[6] ao responder sobre quem é. As respostas são inesgotáveis e únicas, estas acima, são alguns exemplos mais comuns vistos por aí.
Na Filosofia Clínica, cada pessoa possui uma Estrutura de Pensamento (E.P.) que é formada por vários Tópicos e Submodos que se associam entre si e foram se estruturando ao longo da história de vida da pessoa. A E.P. é plástica e móvel, conforme a interação tópica e submodal (Autogenia), bem como das interseções com as circunstâncias de vida (Bases Categoriais) é que surge a possibilidade de mudança e o caráter de deslocamento da E.P.
Sendo assim, “Quem somos” é Verbo a ser conjugado em várias temporalidades.
Quem fui? Quem sou? Quem serei?
Quem sou no coletivo? Quem sou na minha intimidade?
Quem sou para os outros, para o mundo? Quem sou para mim mesmo?
Quem sou dentro das estatísticas?
Quem sou nas canções que ouço? Quem sou nos filmes, novelas ou seriados que assisto? Quem sou nos livros que leio?
Quem sou quando me expresso? Quem sou quando falo? Quem sou quando calo? Quem sou quando escrevo, quando canto, desenho ou danço? Quem sou quando caminho ou corro? Quem sou quando medito ou oro?
Quem sou quando trabalho ou estudo?
Quem sou quando amo ou desgosto? Quem sou na alegria e na tristeza? Quem sou nos sentimentos?
Quem sou nos começos e nos fins? Quem sou quando algo inicia e quando algo finda?
Quem sou no que é verdadeiramente meu? Quem sou no que fizeram de mim?
Quem sou na minha imaginação? Quem sou na minha razão?
Quem sou em mim nos lugares?
Quem sou em mim no tempo?
Quem sou em mim nas relações diárias?
Quem sou em mim nas circunstâncias da vida?
Quem sou nesta existência?
Quem sou eu?
Quem sabe me dizer quem sou?
O que sou? Como sou? São questões que nem todos buscam responder, para alguns, isso apresenta um caráter irrelevante. O que define a relevância ou não de certas coisas para cada pessoa, é (um dos) objeto (s) de estudo da Filosofia Clínica. O estudo da Estrutura de Pensamento de cada pessoa, que “é o modo como a pessoa está existencialmente no ambiente”[7].
A definição traz os termos: ‘como a pessoa está existencialmente’, e por a Filosofia Clínica ser brasileira, sabemos que a palavra “está” difere de “é”. Acho incrível que na Língua Portuguesa, temos dois verbos SER e ESTAR, (diferente do Inglês, por exemplo, TO BE); isso quer dizer, que o modo como a pessoa está, nem sempre pode condizer com aquilo que ela é.
Pensemos em exemplos de pessoas que conhecemos: Será que uma pessoa é feliz ou está feliz? Será que é depressiva ou está depressiva?
Talvez pareça mais fácil perceber como estamos do que aquilo que somos em essência. O verbo Estar parece ter um caráter mais transitório, já o verbo Ser parece apresentar um aspecto mais definitivo. Mas deixemos essa discussão – que vai longe – para os filósofos da linguagem, a nós, cabe somente perceber que um dos elementos fundamentais quando se trata de “definir” o Ser (Quem somos?) é a linguagem que utilizamos para definir, dar nossa resposta, ou mesmo a linguagem do pensar, das reflexões.
Rubem Alves, que (para mim) foi um dos maiores escritores que o Brasil já teve, conta que certa vez, ao ser questionado por uma criança sobre quem ele era, respondeu: “Sou alguém que gosta de ipês amarelos”. Uma resposta simples e de sabedoria profunda, tal como Rubem Alves, um contador de ‘estórias’ (como ele costumava se definir) que trazia sabedoria inspirada pelas coisas simples da vida de um modo poético e singelo. Na orelha de um de seus livros[8], ele escreveu: “Acho que um curriculum vitae é coisa tola – deveria mesmo é se chamar curriculum mortis –, o elenco das coisas que o passado cristalizou. O que realmente importa são as coisas que estão vivas no momento, pois como disse Borges, o momento é a única coisa que existe”. E isso era assim para Rubem Alves.
A isto, eu acrescentaria, que algumas coisas cristalizadas pelo passado podem ser as responsáveis pelo que somos no momento. Não somos seres que existem no agora ao acaso, somos seres com uma história. Para alguns o currículo acadêmico é uma das partes de sua trajetória de vida de maior relevância, chegam a se definir pelas titulações adquiridas. Particularmente, acredito que esta é uma parte tão pequena do todo que é uma pessoa: Como definir uma pessoa por um currículo?
Antigamente, tive uma experiência significativa trabalhando em uma agência de empregos por um curto período: tudo o que eu tinha das pessoas eram seus currículos, que na época, parecia ser suficiente para saber se a pessoa estava apta ou não a determinada vaga de trabalho. Quanta ingenuidade a minha, acreditar que uma pessoa se define ‘somente’ pelo que preenche em um currículo. Se fosse somente isso, fácil assim, Filosofia para quê?
Filosofia, para questionar se somos somente isso. Filosofia, para ultrapassar os limites do óbvio.
Se os grandes filósofos da humanidade se debruçaram sobre a questão de conhecer quem somos e, ainda hoje, apesar de toda a tecnologia ainda não há uma resposta contundente, pois então, eu também não sei.
[1] Papel Existêncial – Tópico 22 em Filosofia Clínica
[2] Axiologia – Tópico 18 em Filosofia Clínica
[3] Pré-juízos – Tópico 5 em Filosofia Clínica
[4] Busca – Tópico 11 em Filosofia Clínica
[5] O que acha de si mesmo – Tópico 2 em Filosofia Clínica
[6] Emoções – Tópico 4 em Filosofia Clínica
[7] Definição sobre o que é a E.P. por Lúcio Packter em Caderno A de Filosofia Clínica – Instituto Packter, p. 14 – linha 53.
[8] ALVES, Rubem. O retorno e terno: crônicas. 29.ed. São Paulo: Papirus, 2013.